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      FD
    • 11 setembro 2007

     # 1

    Este texto não tem muito a ver com casas em si, mas penso que oferece algumas ideias e conceitos que poderão ser úteis a quem procura criar um pequeno jardim na sua casa.

    Expoente do movimento modernista português, monumento nacional desde 2006, o Jardim Gulbenkian, em Lisboa, é agora alvo de um programa especial. Gonçalo Ribeiro Telles, o arquitecto paisagista que, com António Viana Barreto, o criou em 1961-69, e que tem vindo a recuperá-lo desde 2002, vai guiar hoje uma visita ao seu "bosque encantado e misterioso".

    A lotação já está esgotada (30 pessoas), mas o mais consagrado dos ambientalistas portugueses conduziu o DN pela sua obra, feita de clareiras e recantos arborizados, árvores, ervas aromáticas e flores, pássaros, patos e insectos, caminhos amplos e veredas estreitas, lajes de betão, granito, xisto e cascalho. Um espaço desenhado com luz e sombra, vivido por gente de todas as idades, concebido como projecto de arquitectura total. Eis algumas histórias e segredos, em discurso directo.

    Trabalho de equipa

    "Foi com o projecto do Estádio Nacional, de Francisco Caldeira Cabral, que começou a aparecer em Portugal a relação vegetação/traçado. Ele aplicou o que aprendeu na escola de arquitectura paisagista de Berlim e foi nosso professor. Na Gulbenkian, eu e o Viana Barreto fomos desenvolvendo as coisas em conjunto e falando permanentemente com os arquitectos [do edifício: Ruy Athouguia, Alberto Pessoa e Pedro Cid]. Tinha que haver uma relação entre o edifício e o jardim, o interior e o exterior. Não era uma submissão, era uma parceria."

    Local do edifício

    "Está no sítio certo, o que é muito difícil. Hoje, em Portugal, geralmente fazem-se em leitos de cheia, encostas abruptas, onde calha e há terreno à venda. Este está, de facto, na cumeada certa e isso foi procurado logo no concurso. Há uma ligação muito boa da parte edificada com o terreno."

    Importância do clima

    "O jardim vive do clima mediterrânico. Estamos à sombra e vemos o sol. O Parque Eduardo VII, por exemplo, com aquele eixo central, ainda vem da geometria de Versalhes e dos modelos de 1900. Mas os franceses têm aquela paisagem e a bruma, uma luz mortiça que pede o ponto de fuga. A nossa luz é violenta, temos de tirar partido dela de outra maneira."

    Paisagem desenhada

    "Corresponde à paisagem rural portuguesa, em que se contrapõem espaços claros e escuros, bosque e abertura. Camões nunca descreveu na sua poesia nenhuma paisagem de África ou da Índia, mas a da sua meninice no Zêzere e a do Tejo. Lugares que as pessoas, então, associavam ao descanso. Aqui fizemos a mesma coisa: a esta essência mediterrânica do claro-escuro juntámos a nossa paisagem."

    Pausa e movimento

    "Pensámos as coisas assim porque recebemos muitos ensinamentos da escola alemã. Isto é uma sucessão de espaços, para se ir descobrindo."

    Vida no bosque

    "Temos vida diferente nestas clareiras e no interior do bosque. Um jardim não nasce assim. O bosque resulta da gestão da paisagem, as veredas vão-se abrindo. Aqui já olhamos para o chão, não é? [risos] Isto está cheio de sapos e caracóis! Passámos da grande perspectiva para uma zona completamente diferente. Agora aparece a clareira, começa a aparecer o mistério. O jardim tem vida própria - aliás, tem várias vidas! E cada pessoa o vê de maneira diferente. Há jardins no jardim."

    Água e fauna

    Estes tanquezinhos circulares [fruto da recente renovação] não só reflectem a vegetação - há, claro, um valor estético - como têm uma importância enorme para a diversificação da fauna. Como temos arbustos e água, os pardais diminuíram e aparecem mais pássaros de bico mole, os insectívoros, que nos interessam: toutinegras, rouxinóis, chapins... vêm por causa da água, da defesa do arbusto e desta clareira. Na orla poente há mais e ali sente-se uma luz muito especial. Estes tanques criam o reflexo e uma nova dimensão: a da profundidade que se encontra nos poços."

    Protecção do ruído

    "Estes arbustos [junto aos muros da rua] foram pensados como barreira visual e contra o ruído. Mas o mais importante é o efeito psicológico, sentirmos que a cidade está do lado de lá."

    Obras de arte

    "Vieram depois. Foram-se colocando. Não houve nenhuma preocupação inicial de colocar determinada estátua, excepto a de Gulbenkian, o fundador."

    Árvores e economia

    Privilegiaram-se, sobretudo, árvores mediterrânicas? "Com certeza. Mas não são receitas, são consequências da ideia". Pesou a questão dos custos? É mais barato cuidar de um jardim se a vegetação for autóctone? "Não. A economia está no facto de estes jardins, criados como paisagem, não terminarem mas, sim, desenvolverem-se. Vão-se modificando, é um todo em permanente movimento."

    Recantos perfumados

    Há zonas onde os cheiros são mais acentuados. Aqui caril, ali rosmaninho. "Mas isso foi apenas relativamente pensado. Sabemos que há umas plantas mais odoríferas, mas não vamos tão longe! A essência do desenho é a vida e o traçado - que tem muito a ver, evidentemente, com a natureza do lugar. O resto vai acontecendo."

    Estacionamento subterrâneo

    Foi uma dor de cabeça, por causa da fixação de raízes e drenagens? "Não. Quem trabalhou mais nessa área foi o Viana Barreto, porque tinha feito já uma coisa idêntica no Hotel Ritz, com aquelas plataformas plantadas. Isso já entra no problema da técnica, é uma questão de engenharia biofísica."

    Manutenção dos espaços

    "Nunca acaba, todos os dias caem e crescem ramos, as plantas estão permanentemente a criar ambientes. O que é preciso é manter a ideia inicial."

    Degradação nos anos 70

    "A conservação começou, aqui, a fazer-se segundo os termos convencionais dos jardins de Lisboa: se nascem coisas selvagens vai-se logo arrancar, plantam-se rosas... O projecto ia sendo desvirtuado. Inconscientemente, ia tendo uma conservação como se fosse outra coisa. Hoje, o grande problema é a falta de profissionalismo. A propaganda das imobiliárias tem sempre piscinas, relvados e palmeiras, cenários sem qualquer relação com o projecto - e assim se estragou parte do Algarve e continua a estragar-se o País. O espaço verde não é visto como estruturante, mas como complemento, decoração."

    Lago e cursos de água

    "Também foram criados. O lago central é determinante do projecto, porque a morfologia do terreno o coloca ali. Não há eixos, há é um lugar com uma determinada escultura. Isto é uma escultura de terreno. E onde houver sistema natural, há água. É a morfologia que dá estas quedas. O desenho da arquitectura paisagista parte da paisagem - e quando ela foi destruída parte-se do lugar: o solo, o relevo, a circulação da água, a chuva."

    Barreira do CAM

    Em 1980, a decisão de construir o Centro de Arte Moderna no topo sul do terreno foi muito contestada por Ribeiro Telles e Viana Barreto. Queriam-no a leste, para não cortar a passagem para os terrenos da Casa Vilalva (parte dos quais a Gulbenkian viria a comprar em 2006). "Hoje, toda a gente contesta essa solução [do CAM]! O jardim foi pensado para absorver aquela área, embora só houvesse uns esboços. Tudo isto tem apenas sete hectares e parece muito maior porque entramos num labirinto. Para os novos terrenos, só se passa pelo lado esquerdo. Eu faria ali um jardim de Alcino, o jardim dos pomares gregos."

    Diversidade da flora

    Teve que ser repensada nesta recuperação? "Sim, principalmente, porque diminuíram as áreas de sol e aumentaram as áreas de sombra, pelo que o revestimento passou a ser outro - mas nem se dá por isso. Este pinhal [junto ao CAM] tem um ano e já ninguém se lembra de como isto era! Agora, há pinheiros de três tamanhos para garantir a continuidade do ciclo da vida. Dos eucaliptos originais [da época de construção], também só ficaram, então, três ou quatro". Um deles, junto à galeria de exposições temporárias.

    Cobertura do anfiteatro

    "Não me agrada, fica muito pouco grego com aquilo [holofotes] em cima! [risos] Perdeu-se o céu. Há várias componentes no jardim: o céu, a grandeza, a luz e a cor, o movimento e a cultura - a mão do homem."

    Reacção do público

    Qual o maior desafio que enfrentou quando foi convidado para reabilitar o jardim? "As pessoas, o público, que tem como referência aquilo que vê nos jornais e acha que o bom e 'moderno': a relva, as palmeiras e os canteirinhos com flores. Agora já reagem bem, mas foi um problema. Não percebiam o que andávamos a fazer."
    http://dn.sapo.pt/2007/09/08/artes/um_bosque_misterioso_coracao_lisboa.html
 
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