Hoje, no Público, falei de um manifesto que defende que a origem dos nossos males está no memorando da troika. É falso: está numa economia e num Estado viciados em dívidas
António Hespanha é uma pessoa muito observadora. Soubemo-lo no último Prós e Contras. Quando vai a um supermercado e olha para os carrinhos de compras dos outros clientes, acha que as suas escolhas não são racionais. Não sei o que o douto professor conhecerá da vida das outras pessoas para fazer essa avaliação, mas se calhar não necessita de saber muito. Ele faz parte daquela elite que julga conhecer as nossas necessidades mesmo quando são apenas nossas. É também dos que acham que os que pensam diferente sofrem de uma irremediável "impiedade" que faz deles monstros em potência. Até porque é um dos subscritores do manifesto "por um futuro decente", que junta gente que, como ele, só pensa no bem do próximo - desde que o próximo aceite que sejam eles a dizerem o que é o seu bem.
Nesse manifesto defende-se que cabe ao Estado "organizar a sociedade em bases colectivas". Naturalmente que, se isso sucedesse, os clientes dos supermercados não fariam compras irracionais - talvez até nem fizessem compras, pois as prateleiras estariam vazias ou só teriam os produtos que iluminados com "sensibilidade social" como o prof. Hespanha entendem-se necessários. E também não haveria maliciosas promoções oferecidas pelos gananciosos dos donos dos supermercados, apenas o que o Estado entendesse correcto - "em bases colectivas".
Parece exagero, mas não é. Nesse manifesto, que juntou as luminárias do costume a uns trânsfugas do PS, também se diz que todos os nossos problemas têm origem no acordo com a troika. Como se sabe, há um ano, antes desse acordo, nós não tínhamos problemas, só tínhamos soluções. Quando não tínhamos soluções, tínhamos pelo menos "uma visão". E, claro, estávamos prenhes das "ideias generosas" que, de acordo com os subscritores do documento, faltam aos nossos responsáveis mas sobram nos corações sensíveis do prof. Boaventura, do coronel Lourenço ou do ex-sindicalista Da Silva.
Todo o manifesto se pode resumir a duas ideias centrais. A primeira é que não podemos empobrecer. A segunda é que não devemos pagar as nossas dívidas. Chama-se-lhe, eufemisticamente, uma "negociação com todos os credores" que "não pode deixar de ser dura". Ou seja, propõe-se como solução para o empobrecimento um caminho que nos tornaria irremediavelmente mais pobres.
É certo que o prof. Hespanha se apresenta apenas como historiador, mas é estranho que, tendo passado o Prós e Contras a apelar a que se olhasse para a realidade, seja de uma total cegueira quanto a factos bem reais. E um deles é que Portugal nunca conseguiu, desde pelo menos 1950, equilibrar as contas externas. Mesmo nos períodos em que a nossa economia cresceu mais depressa, sempre importámos mais do que exportámos. Fomo-nos safando graças às remessas dos emigrantes, à ajuda dos fundos europeus e ao investimento externo, até que chegou o tempo do crédito fácil e barato. Temos a dívida que temos porque, só desde 1995, fomos acrescentando todos os anos à dívida externa o equivalente a dez por cento do PIB. Porque consumimos sistematicamente mais dez por cento do que aquilo que produzimos. Porque vivemos a crédito e foi esse desequilíbrio que causou os nossos problemas.
Há, no essencial, duas formas de ultrapassar esta nossa dependência de dívidas cada vez maiores. Uma é a forma decente e honrada de o fazer, que é reformarmos a nossa economia e os nossos hábitos de forma a torná-los sustentáveis. Isso implicará, naturalmente, alterar hábitos de consumo, adaptando-os às nossas possibilidades. A outra é a forma indecente e desonesta e passa por dizer aos nossos actuais credores que não pagamos e aos nossos futuros credores que queremos é subsídios. A tais exigências chamaremos "solidariedade" e embrulhá-las-emos em discursos sobre a "coesão social". Quem tiver dúvidas que leia o manifesto: está lá a retórica toda.
Uma das coisas mais extraordinárias destes debates é o ar sério, até compungido, com que pessoas que nunca perderam um minuto da vida em acções de solidariedade se propõem "ser solidários" com o dinheiro dos outros. Sejam eles contribuintes portugueses ou contribuintes alemães (se forem alemães é melhor ainda). É sempre uma posição confortável e de elevada "autoridade moral". O pior é quando se tem de passar da simples e fácil indignação às propostas concretas.
Os subscritores do nosso manifesto ainda estão na primeira fase, a do simples protesto. A das proclamações tão gongóricas como vagas. Basta-lhes dizer que são pela "defesa da democracia, da soberania popular, da transparência e da integridade, contra a captura da política por interesses alheios aos da comunidade". Ou que dão "prioridade ao combate ao desemprego, à pobreza e à desigualdade". É fácil e é óptimo. Dir-se-ia até que estamos todos de acordo. Só que não estamos.
Propor a denúncia do memorando da troika tem consequências. Estar à altura da grandiloquência destas proclamações também. Pelo que se algum dia tiverem de passar das frases gerais às medidas concretas, as nossas almas sensíveis teriam, para serem coerentes, de propor algo semelhante à plataforma eleitoral do Syriza, cuja leitura é altamente recomendável porque altamente instrutiva. Sobretudo num país como Portugal, onde quase tudo o que ali se propõe já foi por nós testado - pelos governos de Vasco Gonçalves, em 1975. Com os resultados económicos conhecidos.
A minha ideia de um país decente não é essa. Nem é a de um país a viver de subsídios.
Colocado por: marco1não deixo de frisar que este é um discurso tão enviesado como outros com outros sentidos.
insiste muito em apontar marcas ao discurso oposto ou seja: são anti troika, só defendem esquemas subsidiários, são não pagadores e por ai fora, empolando o discurso de tal forma a que o caminho encetado seja a verdade absoluta perante a realidade.
peço desculpa mas não embarco nisso. Para mim analisando os "vários lados"é tudo sectário e não obvio.Concordam com este comentário:oxelfeR (RIP),trabalharmuitobem
Mais de 250 personalidades de várias áreas políticas subscreveram um manifesto anti-troika e pelo Estado Social. Deste manifesto sairá um Congresso Democrático das Alternativas, a ter lugar no dia 5 de Outubro. Segue o texto do manifesto.
Resgatar Portugal para um futuro decente
“Só vamos sair da crise empobrecendo”. Este é o programa de quem governa Portugal. Sem que a saída da crise se vislumbre, é já evidente o rasto de empobrecimento que as políticas de austeridade, em nome do cumprimento do acordo com a troika e do serviço da dívida, estão a deixar à sua passagem. Franceses e gregos expressaram, através do voto democrático, o seu repúdio por este caminho e a necessidade de outras políticas. Em Portugal, o discurso da desistência e das “inevitabilidades” continua a impor-se contra a busca responsável de alternativas.
Portugal continua amarrado a um memorando de entendimento que não é do seu interesse. Que nos rouba a dignidade, a democracia e a capacidade de coletivamente decidirmos o nosso futuro. O Estado e o trabalho estão reféns dos que, enfraquecendo-os, ampliam o seu domínio sobre a vida de todos nós. Estamos a assistir ao mais poderoso processo de transferência de recursos e de poderes para os grandes interesses económico-financeiros registado nas últimas décadas.
Tudo isto entregue à gestão de uma direita obsessivamente ideológica que substituiu a Constituição da República Portuguesa pelo memorando de entendimento com a troika. E que quer amarrar o País a um pacto orçamental arbitrário, recessivo e impraticável, à margem dos portugueses. Uma direita que visa consolidar o poder de uma oligarquia, desmantelar direitos, atingir os rendimentos do trabalho (que não sabe encarar como mais do que um custo), privatizar serviços e bens públicos, esvaziar a democracia, desfazer o Estado e as suas capacidades para organizar a sociedade em bases coletivas, empobrecer o país e os portugueses não privilegiados.
Num dos países mais desiguais da Europa, o resultado deste processo é uma sociedade ainda mais pobre e injusta. Que subestima os recursos que a fortalecem, aT começar pelo trabalho. Que hostiliza a coesão social. Que degrada os principais instrumentos de inclusão em que assentou o dese
nvolvimento do País nas últimas quatro décadas: Escola Pública, Serviço Nacional de Saúde, direito laboral, segurança social.
Este é um caminho sem saída. O que está à vista é um novo programa de endividamento, com austeridade reforçada. Sendo cada vez mais evidente que as políticas impostas pela troika não fazem parte da solução. São o problema. Repudiá-las sem tibiezas e adotar outras prioridades e outras visões da economia e da sociedade é um imperativo nacional.
Este é o tempo para juntar forças e assumir a responsabilidade de resgatar o País. É urgente convocar a cidadania ativa, as vontades progressistas, as ideias generosas, as propostas alternativas e a mobilização democrática para resistir à iniquidade e lançar bases para um futuro justo e inclusivo que devolva às pessoas e ao País a dignidade que merecem.
São objetivos de qualquer alternativa séria: a defesa da democracia, da soberania popular, da transparência e da integridade, contra a captura da política por interesses alheios aos da comunidade; a prioridade ao combate ao desemprego, à pobreza e à desigualdade; a defesa do Estado Social e da dignidade do trabalho com direitos.
É preciso mobilizar as energias e procurar os denominadores comuns entre todos os que estão disponíveis para prosseguir estes objetivos. Realinhar as alianças na União Europeia, reforçando a frente dos que se opõem à austeridade e pugnam pela solidariedade, pela coesão social, pelo Estado de Bem-Estar e pela efetiva democratização das instituições europeias.
É fundamental fazer escolhas difíceis: denunciar o memorando com a troika e as suas revisões, e abrir uma negociação com todos os credores para a reestruturação da dívida pública. Uma negociação que não pode deixar de ser dura, mas que é imprescindível para evitar o afundamento do país.
Para que esta alternativa ganhe corpo e triunfe politicamente, é urgente trabalhar para uma plataforma de entendimento o mais clara e ampla possível em torno de objetivos, prioridades e formas de intervenção. Para isso, apelamos à realização, a 5 Outubro deste ano, de um congresso de cidadãos e cidadãs que, no respeito pela autonomia dos partidos políticos e de outros movimentos e organizações, reúna todos os que sentem a necessidade e têm a vontade de debater e construir em conjunto uma alternativa à política de desastre nacional consagrada no memorando da troika e de convergir na ação política para o verdadeiro resgate democrático de Portugal. Propomo-nos, em concreto, reunindo os subscritores deste apelo, iniciar de imediato o processo de convocatória de um Congresso Democrático das Alternativas. Em defesa da liberdade, da igualdade, da democracia e do futuro de Portugal e do seu papel na Europa. E apelamos a todos os que não se resignam com a destruição do nosso futuro para que contribuam, com a sua imaginação e mobilização, para a restituição da esperança ao povo português.
Entre os mais de 300 subscritores desta convocatória (q ue podem ver na lista em baixo, apesar de lhe faltarem alguns nomes, que acrescentarei), há indicalistas, deputados, militares de abril, jornalistas, académicos, dirigentes associativos, escritores, músicos, cineastas e cidadãos que se destacam pelo seu empenhamento cívico, com uma enorme abrangência política, social, etária e regional, com partido (do PCP, do BE e do PS) e independentes. Juntaram-se para organizar este congresso das oposições ao trágico caminho que a troika e o governo que quer ir para além dela impõem ao nosso país. Esperemos que o dia 5 de Outubro seja o começo de um processo que ajude a juntar pessoas em torno da construção de alternativas à austeridade. Em baixo, estão apenas os primeiros 280 promotores deste congresso. Espero que muito mais gente se envolva nesta tentativa de criar pontes entre pessoas que concordam em muito mais coisas do que
Colocado por: luisvvEm resumo:
O memorando é mau, a direita é "obsessivamente ideológica", a direita é má e quer consolidar o poder de uma oligarquia; As políticas da Troika nao dão a solução, mas o problema, sendo imperativo repudia-las.
(..)
Para quem achar que se trata de caricaturar o manifesto, talvez nao fosse má ideia perguntar: depois de repudiar as políticas da Troika e de impor duras negociações com os nossos credores, quem paga as despesas do estado ?
Mas admitamos que nos perdoam 50% da divida, por exemplo. E depois? Quem nos empresta mais ? Quem sustenta o estado que continua a gastar mais do que recebe ( e que por vontade dos manifestantes gastara ainda mais ...) ?? Haverá gente que nao perceba que défices geram divida?
Ou acham que basta falar de boas intenções e recusar o empobrecimento?
Colocado por: palmstroke
luivv,
entre não pagar o empréstimo e chegar à conclusão, junto da comunidade europeia e do FMI, de quem nos impôs estas condições foi incompetente, ou não sabia o que estava a fazer, ou agiu de má-fé, vai uma grande diferença.
numa união política e monetária de países, deverá ser possível questionar e chegar a entendimentos políticos cuja complexidade vá além dessa lógica do balancete-de-contabilidade.
Colocado por: gf2011Já me manifestei pela inteligência das crónicas deste senhor. Habituei-me a gostar do que escreve.
Ao principio não ía muito à bola com ele, foi aos poucos.
Hoje, no Público, para calar os demagogos:Concordam com este comentário:Luis K. W.Discordam deste comentário:oxelfeR (RIP)
Colocado por: Luis K. W.(porque tudo quanto cheira a BE, agonia-me)
palmstroke,
Eu também não alinho, ideológicamente, com o JMF.
Mas uma coisa é verdade: o nosso «estado social» cresceu graças a dinheiro que não tinhamos. Teremos de nos habituar a viver com o que temos.
(e... cortar nas ppp, aquisições de submarinos, broncas tipo bpn, etc.)
Na minha opinião não se deverá sugerir aos credores que NÃO lhes iremos pagar nas condições e prazos previstos. Caso contrário, arriscamo-nos a que o crédito acabe nesse mesmo instante.
Claro que eu acho, desde o princípio, que os JUROS a que nos estão a emprestar dinheiro não são ajuda nenhuma. Antes pelo contrário. Se houvesse alguma «ajuda» ou solidariedade os juros seriam muito perto de 0%.
Portanto, se outros - porque bateram o pé - vão conseguir ajuda (para os respectivos "bancos") com uma taxa de juro de saldo, porque raio não havemos de ter o mesmo?
Colocado por: Luis K. W.(porque tudo quanto cheira a BE, agonia-me)
Colocado por: gf2011Não sei porque diz isso....
Colocado por: Luis K. W.
Está a ser irónico, certo ?