INTRODUÇÃO O tema é de máxima importância, numa altura em que as decisões para se promoverem acções com repercussões sobre o ambiente não podem ser tomadas com ligeireza, isto é, sem que todos os dados sejam bem avaliados. O que pode ser uma boa solução para um eucaliptal, pode revelar-se péssimo noutros contextos, pois o território não é todo igual.
Nesta óptica, é importante ter muito cuidado e estabelecer muito bem os critérios de actuação no território para evitar medidas contraproducentes e até erros que se possam vir a pagar caro, sobretudo quando, como é o caso, se pretendem implantar em larga escala, em todo o país. Este documento teve o objectivo de analisar os dados fornecidos no âmbito da Consulta Pública do Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais (PNGIFR), tendo também em linha de conta a prática que se tem verificado no território no que concerne a intervenção sobre a vegetação e os respectivos critérios, bem como, alertar para as restrições de uma das medidas que mais tem sido apontada como recurso para o controlo da vegetação: o Fogo Controlado.
ANÁLISE DOS DOCUMENTOS DA CONSULTA PÚBLICA
Documento 1 - Cadeia de valor O documento é pouco descritivo, contudo, na página 11 é referido: “No nível nacional devem ser estabelecidas as macropolíticas e orientações estratégicas que contribuam para reduzir o perigo (vegetação) e alterar comportamentos (proprietários, utilizadores e beneficiários diretos e indiretos do território rural).” Fica a ideia de ser a vegetação, toda ela, em quaisquer circunstâncias, perigosa, e não é assim. Há de facto vegetação perigosa e circunstâncias perigosas perfeitamente identificadas, pelo que se trata de uma generalização bastante desadequada e que conduz a uma mistificação que nada contribui para uma correcta actuação na prevenção dos incêndios.
Documento 2 - Estratégia 20-30
A estratégia definida levanta as questões que se seguem. Há uma clara enfatização da importância dada ao Fogo Controlado no controlo da vegetação. Esta situação é perceptível nos seguintes trechos e referências: • Na página 7, quando é referida a Resolução do Conselho de Ministros n.º 157-A/2017, onde o ponto 5 de III (Aumentar a resiliência do território), menciona a concretização do Plano Nacional do Fogo Controlado.
• Na página 13 é afirmado claramente: “é necessário preparar o território, as pessoas e os operacionais para trabalhar no terreno de modo a incrementar a segurança de todos, ao mesmo tempo recuperando o fogo como fator ecológico comummente aproveitado na gestão agrícola, florestal e dos habitats. Desta forma, os incêndios rurais que ocorram serão de menor gravidade, destruirão muito menos valor e representarão muito menor ameaça para a segurança e vida das pessoas. Nesta visão participa o uso do fogo como ferramenta de gestão da paisagem e elemento ecológico, desde que devidamente enquadrada no seu uso.”. Mas não se explica qual é o enquadramento em lado nenhum. • Na página 27 é referida a utilização do fogo na prevenção, o que remete para o conceito de Fogo Controlado: “Sendo necessárias modificações para responder aos problemas identificados, o presente Plano clarifica, ex ante, os objetivos a atingir no horizonte temporal 2020-2030 (…). De forma a atingir uma situação onde o conhecimento e a utilização do fogo possa ser capitalizado na prevenção e não só na supressão de incêndios (…).”.
• No quadro da página 35, onde são definidas as responsabilidades das entidades do SGIFR, está como incumbência da GNR executar acções de Fogo Controlado em articulação com o ICNF.
Acresce os seguintes realces no que respeita à descrição do papel da vegetação:
• Na página 23 a culpa dos incêndios é claramente atribuída à vegetação, sem que haja qualquer esforço em referir, qual vegetação e em que circunstâncias: “Sem prevenção que quebre este ciclo e que reduza o número de incêndios e a quantidade de vegetação, conforme descrito por Collins et al (2013), Portugal ficaria aprisionado na “armadilha do combate”, onde um dispositivo de combate com cada vez maiores investimentos é, apesar disso, incapaz de suster a propagação do fogo nos dias com condições meteorológicas extremas, e de outro modo vítima do seu sucesso, gerando oportunidade para a acumulação de combustível vegetal que virá a arder nos dias em que o combate não tem na meteorologia qualquer ajuda.”
• Contudo, na mesma página (23) da última alínea são referidos as zonas onde os incêndios atingem maior severidade: “Considerando as debilidades já enunciadas, o território português apresenta um perigo elevado de incêndio rural, em particular a norte do Tejo, mas também no sudoeste alentejano, no barlavento algarvio e na ilha da Madeira, onde a vegetação cresce a um ritmo acima da média europeia”, sem nunca esclarecer que, na parte continental, essas áreas correspondem a monoculturas, sobretudo de eucaliptos e zonas onde espécies invasoras pirófitas abundam (tudo espécies que, de facto, têm uma taxa de crescimento acima da média).
• Também na página 43 a vegetação é apelidada de perigosa sem melhor definição: “No nível nacional devem ser estabelecidas as macropolíticas e orientações estratégicas que contribuam para reduzir o perigo (vegetação) e alterar comportamentos (proprietários, utilizadores e beneficiários diretos e indiretos do território rural).” É referido diversas vezes que o objectivo é um novo modelo de paisagem (“Novas paisagens”) a planear pelo ICNF (página 35), sem que se perceba muito bem qual, de modo transparente. Também na página 40, a propósito da prevenção é referida para a “Gestão de território rural”, é feita referência às “ações que tornam o território preparado para o fogo”, as quais compreendem a construção das tais “Novas paisagens”.
Por último, na página 53, OB1.1, fala-se, como medida, redimensionar (aumentando) a propriedade rural, mas, embora existam estudos que relacionam a gravidade dos incêndios com o tamanho das propriedades, esta relação, em Portugal não é assim tão linear. De facto, o Alentejo, onde os latifúndios estão em maioria, embora as condições climáticas sejam das mais desfavoráveis, historicamente tem tido poucos incêndios graves. Mas deve-se sobretudo ao tipo de ocupação, onde predominam os montados. Pois as zonas onde optaram por eucaliptais, embora latifúndios, também têm ardido. São exemplos disso, o litoral, a serra de Ossa e arredores, bem como, o Norte de Monchique, abrangendo áreas do Algarve.
A pequena propriedade a Norte do país, de facto, tem sido palco de grandes incêndios, mas verifica-se o predomínio de eucaliptais e pinhais de pinheiro bravo, onde, qualquer falha na gestão é gravosa. Já o barrocal algarvio, área de minifúndio, onde o tipo de consorciação de espécies é estável à semelhança do montado, raramente arde com gravidade, mesmo com baixa qualidade da gestão criada por um crescente abandono das terras. Assim, o emparcelamento pode ser necessário (bem controlado), tal como criar um Banco de Terras, mas convirá identificar bem as causas dos incêndios, evitando este tipo de equívocos.
REFORMULAR O PROGRAMA NACIONAL DE FOGO CONTROLADO
A prática do Fogo Controlado é regulamentada através do Despacho n.º 7510/2014 e do PNFC, bem como, tal como constatado, vem enfatizada neste Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais (PNGIFR), actualmente em Consulta Pública. O Fogo Controlado é actualmente encarado, a nível nacional, como uma panaceia para todas as situações em que se quer efectuar a redução do volume de vegetação, o que não está correcto. Para alcançar uma verdadeira reforma das florestas e espaço rural interessa reformular o Programa Nacional de Fogo Controlado (PNFC) e que neste PNGIFR venham esclarecidas as condições da sua utilização, bem como, as suas limitações.
É muito importante que se analise e compreenda bem esta técnica, de modo a não enveredar por caminhos pouco adequados de que nos venhamos a arrepender. Para facilitar, considerar-se-á nesta análise espécies pirófitas, não as que desenvolveram mecanismos passivos de defesa contra o fogo (caso do sobreiro com a cortiça), mas apenas aquelas cuja evolução dotou claramente de mecanismos activos para beneficiarem com ele. Produzem óleos essenciais, resinas e/ou muita matéria seca, que ajudam à ignição e a propagar a chama e, eliminadas as plantas mais susceptíveis, passam a dominar no terreno ardido. Têm também sementes resistentes ou que se propagam melhor pela acção do fogo (acácias, pinheiro de Alepo, esteva comum, eucaliptos, entre outros).
O Fogo Controlado é uma técnica de redução do volume da vegetação que visa transformar o comportamento do fogo, criando condições para evitar incêndios de copas, mais gravosos, mantendo-os à superfície onde são mais facilmente controlados. Para tal é fomentada a descontinuidade entre o fitovolume vegetal da copa e o arbustivo/herbáceo, através da combustão a baixas temperaturas deste último, que mais tarde poderá voltar a rebentar mais rasteiro, como acontece com um corte raso.
Contudo, a utilização continuada desta técnica numa área desadequada para o efeito, aumenta a propensão para os incêndios e torna os ciclos de retorno do fogo mais curtos, pelas seguintes razões principais:
Elimina as espécies de plantas menos adaptadas ao fogo, criando assim condições para que as espécies pirófitas e de crescimento rápido passem a dominar;
• Diminui a concentração de humidade perto do solo e degrada as características deste; • Interfere na regeneração natural das árvores, queimando os juvenis, criando assim condições para o avanço dos matos heliófilos.
Baseado nestes pontos, são criadas condições para que a vegetação pirófita e de crescimento rápido domine pelos seguintes motivos:
• O Fogo Controlado queima as partes superficiais da vegetação de pequeno diâmetro de caule, as quais podem voltar a rebentar (se forem espécies que rebentem do cepo ou da raiz) e embora afecte em simultâneo tanto as espécies de crescimento lento, como as de crescimento rápido, irá beneficiar estas últimas por taparem o acesso à luz às restantes. A maior parte das espécies pirófitas são de crescimento rápido;
• Depois do fogo, eliminadas as espécies desadaptadas, ficam a dominar as pioneiras pirófitas cuja estratégia de reprodução passa pelo estímulo da germinação das sementes pelo fogo (acácias, háqueas, etc.). A esteva comum (Cistus ladanifer), é favorecida, mesmo a baixas temperaturas como as do Fogo Controlado (Vd.http://secforestales.org/publicaciones/index.php/congresos/article/viewFile/7425/73 48);
• Muitas das espécies pirófitas são em simultâneo, espécies invasoras, logo, têm uma estratégia de propagação agressiva no território, à custa da redução da biodiversidade (é conhecido o exemplo de algumas acácias em Portugal);
• Interfere na regeneração natural das árvores queimando os juvenis, sendo a sombra das copas da maior parte das árvores autóctones uma forma de controlo dos matos heliófilos, que são bastante mais inflamáveis e que não gostam de sombra;
• Retira simultaneamente a humidade e as espécies que concentram mais a humidade ao nível do solo, criando-se condições de maior secura que irão alterar o elenco florístico para um quadro tendencialmente mais heliófilo e esclerófito, tornando os locais mais inflamáveis;
• Diminui a fertilidade do solo porque, mesmo que um operador, devidamente credenciado, tente evitá-lo, fica destruída à superfície grande parte da manta morta e matéria orgânica que se transformariam em nutrientes vegetais após decomposição. Este empobrecimento das qualidades físicas e químicas do solo irá determinar, em termos fitossociológico, o elenco florístico, sendo que, as pirófitas, no geral, pioneiras oportunistas e bem adaptadas a estes contextos, ficam beneficiadas (ex.: a esteva);
• Destruída a manta morta, sendo um solo florestal desprotegido hidrófugo, a água terá dificuldade em infiltrar-se, passando a escoar superficialmente (criando erosão). O solo com menor teor de humidade fica, também assim, menos fértil e já não poderá ser tão facilmente suporte para espécies mais exigentes, enquanto, pelo contrário, muitas espécies pirófitas são pioneiras e gostam da aridez;
• Criam-se cinzas e, tendo em conta que, no ciclo de nutrientes da vegetação florestal, a queda da folhagem e dos ramos mortos representa, através da sua decomposição, a devolução dos nutrientes ao solo, a cinza torna-se uma espécie de “devolução antecipada” (apesar da perda de alguns nutrientes) que, se não for fixada e reintegrada no solo, é rapidamente lixiviada, resultando, de forma gravosa, na perda de fertilidade (e na, infelizmente frequente, contaminação das linhas de água), favorecendo, também assim, o retorno das espécies pioneiras pirófitas. Quanto mais constituído por espécies pirófitas for o elenco florístico, mais curtos ficam os períodos potenciais dos ciclos de fogo.
Em vez de se aumentar a resiliência do território (como é entendido na página 7 do PNGIFR), o terreno transforma-se num “barril de pólvora”, com recorrências de incêndios em períodos cada vez mais curtos, passando qualquer percalço a ser um grave problema, o que acaba num ciclo vicioso, por conduzir ao redobrar da vigilância e das medidas restritivas contra incêndios.
O Fogo Controlado, para ser feito da forma mais adequada em zonas de ecossistemas sensíveis, tais como as florestas não degradadas de espécies autóctones ou em paisagens culturas tais como o montado, teria de estar associado à reintrodução das espécies vegetais mais susceptíveis, respeitando o quadro fitossociológico original, o que, não só encareceria esta técnica, como seria falível pela complexidade florística envolvida e porque o fogo altera as características superficiais do solo (secura, redução do teor de matéria orgânica), diminuindo assim a probabilidade de êxito para o restabelecimento de algumas espécies.
De resto, a Legislação é omissa relativamente a esta necessidade de recriar o revestimento vegetal afectado pelo Fogo Controlado, bem como o é este Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais. O link https://esajournals.onlinelibrary.wiley.com/toc/15409309/2013/11/s1 (referente à revista Frontiers in Ecology and the Environment, da ESA, Volume 11, edição s1), é informativo relativamente à utilidade do Fogo Controlado e reforça esta ideia: deveria aplicar-se apenas a alguns casos muito concretos e o seu recurso, não deve, ser generalizado.
Dos vários casos de aplicação lá apresentados, de seguida analisados, alguns, como o da pradaria Norte Americana (tal como acontece com algumas das nossas pastagens com as queimadas), têm os ecossistemas já mantidos estacionários, por acção humana, tradicionalmente, através do fogo.
Trata-se de uma situação particular onde, por razões económicas, sociais, ou outras, de contexto local, este método é utilizado para fazer regredir ou manter um ecossistema numa determinada etapa de desenvolvimento, contrariando a normal sucessão ecológica. Assim, impedem que as estepes, savanas, pradarias e similares possam desaparecer, evoluindo para um cenário onde passem a dominar espécies mais lenhosas. É discutível, mas justificável.
No caso dos eucaliptais australianos, o fogo é já muito recorrente. São formações com ciclos de fogo curtos e cujos estratos de vegetação são constituídos, em maioria, por espécies pirófitas. Neste caso o Fogo Controlado irá criar um fogo de superfície, evitando um incêndio de copas mais grave e, havendo já um elenco florístico constituído por pirófitas, haverá pouca alteração na propensão para os incêndios da área intervencionada. Ainda assim, é questionável a pressão contínua exercida sobre a vegetação, mais, com os incêndios que cada vez mais assolam o país, o qual é dos que mais têm utilizado esta técnica.
Noutros casos, como o da África do Sul os constrangimentos à utilização do método estão bem identificados nos relatórios apresentados, confirmando, uma vez que os próprios técnicos têm essa consciência, de não ser possível utilizar em todos os ecossistemas. Em Portugal, pelo contrário, não há essa consciência, é isso que torna a técnica perigosa: a falta de destrinça que serviria para saber parar onde é prejudicial, pois não se dúvida que o ICNF sabe orientar os trabalhos e que a técnica é feita da melhor maneira e por técnicos especializados. Por exemplo, por princípio, não deveria ser prática em montados, nem é tradição que o seja, embora haja quem o preconize.
Quando se importa um modelo como este, comummente utilizado em certas zonas dos EUA e na Austrália, é importante comparar os contextos (e analisar os resultados). Mais, o segundo Relatório da Comissão Independente relativo aos incêndios de Outubro de 2017, que fala de vários locais onde o Fogo Controlado, aplicado pouco tempo antes, tinha reduzido a gravidade do incêndio, também indica locais, nas mesmas condições, atingidos pelos incêndios, como aconteceu nos 100 ha da Serra da Atalhada em Penacova, ou então, servindo de corredor à sua passagem tendo o tratamento sido aplicado 32 meses antes, na Mata do Desterro, em S. Romão, Seia. Ora menos de três anos é muito pouco para um período de retorno do fogo (fazendo corresponder o seu uso ao início da contagem do ciclo).
Nesses locais, pelas razões acima expostas de transformação do solo e do elenco florístico, uma vez utilizado o Fogo Controlado, ter-se-á de continuar a fazê-lo com pequenos intervalos, sempre, para manter a vegetação rasteira. Pois, qualquer descuido e as zonas transformam-se em rastilhos. O que constitui mais uma razão para não ser viável como forma de controlo generalizada.
Em Portugal, de modo geral, interessa empreender o esforço oposto. Como se sabe, o território está com tendência acentuada para a desertificação e toda a dinâmica regressiva da sucessão ecológica tende (nos ecossistemas continentais) para o deserto, passando por uma etapa dominada pelos matos, que são bastante mais problemáticos.
Como nota histórica, o Coronel Varnhagen, que introduziu o conceito de Fogo Controlado, aplicou-o a um pinhal, e apenas refere a queima de caruma (Vd. Gaspar, 2016), o que é bastante diferente. Queimar caruma para evitar um incêndio, num contexto de um pinhal, no início do séc. XIX, numa altura em que não se falava de alterações climáticas, nem seriam provavelmente conhecidas formas alternativas de actuação, é bastante aceitável.
Não encarando o Fogo Controlado como uma panaceia, adequa-se utilizá-lo em Portugal (com controlo apertado e ainda a título experimental) em monoculturas de pinhais, eucaliptais (no caso do eucaliptal, sendo espécie exótica em Portugal, não tem uma associação fitossociológica natural, pelo que a vegetação do sub-bosque tem menor importância), e em zonas tradicionais de silvo-pastorícia com acesso difícil, caso não haja outra forma de controlo. Não esquecendo que a própria pastorícia, com o devido enquadramento, é uma boa alternativa, com a vantagem de aproveitar a biomassa para a alimentação do animal e de resultar na posterior adubação do solo, preciosa para recuperar os ecossistemas degradados.
O Fogo Controlado também pode ser útil como ferramenta no combate a algumas espécies invasoras pirófitas, usualmente, após o seu abate, quando se pretende fazer germinar o banco de sementes do solo todo em simultâneo, para uma sequente intervenção (corte ou arranque), a qual convirá ser seguida de trabalhos de recuperação do quadro fitossociológico potencial do local, através de sementeiras e plantações de autóctones em substituição.
Nos restantes ecossistemas florestais, a partir do momento que estejamos perante vegetação resistente, dever-se-ia fazer um esforço para tentar outras técnicas e promover intervenções mínimas adequadas ao elenco florístico presente, tendentes a incrementar a humidade ao nível do solo e não a diminuí-la cortando excessivamente ou queimando a vegetação. No fundo, incrementando a biodiversidade.
Uma vez que importa potenciar a resistência aos incêndios da vegetação presente nos locais e não o inverso, interessa, em alternativa, ser selectivos nas intervenções na vegetação, priorizando as espécies pirófitas e invasoras, bem como promover núcleos de vegetação autóctone resistentes aos incêndios em locais estratégicos, incluindo as FGC, o que pode passar por substituir a vegetação degradada por vegetação autóctone compatível. Nos grandes incêndios de 2017, Ferraria de S. João foi o exemplo da diferença entre uma área com espécies autóctones rica em biodiversidade e outras com monocultura de espécies pirófitas como a do eucalipto. Embora os cépticos afirmem que o incêndio se extinguiu apenas por estar num flanco descendente, se o local estivesse coberto com eucaliptos não teria sido assim tão fácil e teria continuado o fogo de copas, como aconteceu noutros locais próximos atingidos também por frentes de fogo descendentes.
São bem conhecidas as projecções do fogo a vários quilómetros que os eucaliptos fazem quando ardem. Não há que escamotear este facto: os eucaliptos (pelo menos as espécies mais comuns existentes em Portugal) são espécies pirófitas e a sua adopção em monoculturas só veio agravar, e muito, uma tendência que já existia, pois exige um controlo mais apertado que nem sempre é viável de ser implementado (exemplo das pequenas propriedades a Norte).
A transformação das florestas mediterrânicas em elencos florísticos mais pirófitos remonta ao Neolítico, onde a dominância das quercíneas caducifólias e marcescentes foi gradualmente passando para as perenifólias devido ao uso do fogo para a manutenção e alargamento das pastagens, destacando-se o pinheiro de Alepo como árvore pirófita oportunista que alargou a sua área desde então (Clément, 2005, Vd. https://www.cairn.info/revue-espace-geographique2005-4-page-289.htm). Estas práticas mantiveram-se até hoje, apesar dos conhecimentos agronómicos e silvícolas apontarem para as suas limitações e contra-indicações. Não houve por parte das universidades uma dinâmica forte para as contrariar e arranjar alternativas válidas, apenas se tentou “domesticá-las”. O Fogo Controlado é, de certo modo, o seu “herdeiro”, tentando optimizá-las, partindo das próprias universidades as maiores vozes em sua defesa.
A convicção relativamente à eficácia sem limites do Fogo Controlado não é recente. No dia 11 de Abril de 2014 houve uma conferência no auditório da Ordem dos Engenheiros, organizado pelo Colégio Nacional de Engenharia Florestal, subordinada ao tema dos incêndios florestais, com o título de “Contributo da Engenharia para a Defesa da Floresta Contra Incêndios – DFCI”, onde o Fogo Controlado era apresentado como a grande solução, amplamente utilizada na serra da Freita, apresentada como modelo a seguir em todo o país.
No debate final, houve dois engenheiros florestais (que aparentavam idade mais avançada que os apresentadores e, certamente, mais experiência) que perguntaram se não seria possível optar por soluções alternativas e apresentaram exemplos. O primeiro referiu-se à opção da compostagem, o segundo propôs a pastorícia, mas não lhes deram crédito. De notar que a serra da Freita ardeu dois anos depois de forma catastrófica.
Contudo, a trituração e sequente espalhamento ou a compostagem, in situ, são soluções apropriadas para o tratamento destes resíduos. Embora se reconheça a dificuldade da sua realização e que nem sempre possa haver boas condições para o fazer. Seria muito útil para o país que se olhasse para exemplos estrangeiros bem-sucedidos que utilizam o material resultante das desmatações e das desramações da prevenção dos incêndios, para compostagem, a qual, vendida sob forma de adubo, rende o suficiente para pagar os trabalhos, mesmo sendo parte do composto utilizado na fertilização dos solos locais (Vd. por exemplo http://planethumus.com/sols-mediterraneens/ ).
A solução é menos simples de implementar que o Fogo Controlado, pois, para além de mais morosa, requer uma estrutura que articule as operações de limpeza e desrama com a produção e venda do composto obtido. Mas, no geral, é bastante mais sustentável, consentânea com o quadro das alterações climáticas, pode ser rentável e, consequentemente, criar mais postos de trabalho, para além da restrita dependência de dinheiros estatais das opções de Fogo Controlado.
A compostagem liberta muito menos CO2 (por decomposição) do que a combustão, armazenando carbono na matéria orgânica, a qual contribui para manter a humidade, para suporte às funções físicas e químicas do solo e para o servir, devagar, à medida que se vai degradando, no processo de nutrição das plantas, fechando e ampliando o ciclo.
Deixar a madeira (já apodrecida) no local é outra das formas de manter a humidade e os nutrientes. Embora sejam apontadas razões fitossanitárias para a sua remoção, os mais recentes e credíveis estudos científicos apontam, pelo contrário, para essa necessidade (Vd. https://www.researchgate.net/publication/336081598_Preventing_European_forest_diebacks). Uma pastorícia com encabeçamento apropriado de ovinos, demonstrou, nas experiências científicas efectuadas a áreas com estevas, constituir a melhor forma de recuperação, para repor a diversidade do elenco florístico, contrariamente ao uso do fogo ou ao abandono dos talhões (Vd. https://dspace.uevora.pt/rdpc/bitstream/10174/17723/1/Monte_2015.pdf).
Esta análise, por não ser da minha área de formação, não aborda o impacte do Fogo Controlado, implementado a larga escala, na fauna, sobretudo microfauna, significando a morte de muitas comunidades que não têm forma de escapar ou, de forma indirecta, que dependem de determinado tipo de vegetação para sobreviverem, o que se adivinha particularmente grave nas zonas onde os ecossistemas são mais ricos, como as florestas mistas e os montados, ou quando envolver fauna auxiliar para o homem, por exemplo, insectos polinizadores, sem esquecer que há imensa fauna que é auxiliar de forma indirecta.
Uma paisagem equilibrada é holística. O PNGIFR PRETENDE A CRIAÇÃO DE NOVAS PAISAGENS Embora sem descrições muito conclusivas acerca do que pretendem, infere-se que a criação de novas paisagens anunciada passe por uma modelação generalizada da vegetação criada através da vulgarização do uso do Fogo Controlado, como técnica prioritária, para uma redução muito significativa das espécies arbustivas e subarbustivas (muitas delas não sobrevivem quando obrigadas a permanecer com porte rasteiro ou com cortes sucessivos). É importante usar de cautela com a correcta definição do que se pretende e de haver uma profunda compreensão nos termos que se empregam.
Criar novas paisagens pressupõe (ou deveria pressupor) criar ambientes saudáveis, bem compreendidos quanto à forma como se sustentam, para haver um sentido de perenidade, uma visão a longo prazo. Por exemplo, um montado não é uma monocultura de sobreiros e azinheiras, mas sim (definido de forma simplificada) um sistema antrópico onde há também arbustos e herbáceas, os quais, juntamente com a fauna e o gado adequado, o sustentam. Está equilibrado, com todos estes elementos, e assim deve permanecer, sob pena de se perder.
Os ciclos de fogo frequentes não fazem parte do “ADN” de um montado, apesar das condições climáticas serem as mais propícias do país a que pudesse acontecer (embora, com as “Novas Paisagens” preconizadas, se possa vir a inverter essa situação).
O montado e as florestas mistas de quercíneas raramente ardem com gravidade, e as que ardem estão geralmente nas imediações de eucaliptais ou pinhais em monocultura, ou ainda, em zonas degradadas onde os matos avançaram devido a más práticas.
É importante não pôr tudo no “mesmo saco”, matos e vegetação do sub-bosque não é o mesmo. O que se tem vindo a fazer cada vez mais, com o excesso de corte da vegetação do sub-bosque, mesmo quando estamos em presença de espécies naturalmente associadas, é transformar os montados e as florestas mistas em monoculturas e a degradá-los, abrindo o caminho aos matos, Situação esta que irá ser agravada com o Fogo Controlado.
Quem apanha espargos no campo sabe que são cada vez mais difíceis de encontrar e os tradicionais molhos de espargos bravos têm vindo a ser substituídos pelos cultivados. Também as rosas-albardeiras, entre várias espécies, têm vindo a escassear com uma mecanização mal orientada, dando lugar a monoculturas de azinheiras e sobreiros, que muitas vezes adoecem, pois a associação de espécies compatíveis também os protegeria.
As monoculturas florestais, mesmo que não se trate de espécies pirófitas como o eucalipto, ardem mais facilmente, pois a manta morta não se degrada bem e seca ou porque passam a ter, no verão, apenas a companhia de herbáceas de prados, secos, que ardem facilmente. Isto, se não for antes a companhia de espécies invasoras pirófitas, como as acácias, ou da esteva (Cistus ladanifer), que para além de espécie extremamente pirófitas (cuja área de ocupação tem crescido com os incêndios), competem com as árvores em sucessões regressivas.
CONCLUSÃO
O Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais (PNGIFR) identifica muito mal os reais perigos que estão na origem dos incêndios. Estão criados vários equívocos:
1.º O PNGIFR generaliza e classifica recorrentemente de perigosa a vegetação, contribuindo assim para uma fobia coletiva, equívoco contraproducente que se tem vindo a instalar e a alastrar pela opinião pública. As condições de perigo deveriam ser, mas não são esclarecidas.
Teoricamente, a função de efectuar o controlo correcto de vegetação nas Faixas de Gestão de Combustível (FGC), onde intervir faz mais sentido, seria para proteger as restantes áreas verdes, para lá delas ou interiores a elas. Contudo, o caminho que se está actualmente a desenhar, homogéneo para todo o território, é o de intervenções cada vez mais profundas e alargadas, no interior de áreas de paisagens sustentáveis, onde uma razia prejudica grandemente o ecossistema e até é contra-indicada em termos de defesa contra incêndios.
2.º O Fogo Controlado é destacado com excessiva relevância no controlo da vegetação, o que é errado e extremamente perigoso, pois carece do respectivo enquadramento e uma correcta definição de onde de facto se pode utilizar, para evitar consequências muito gravosas, caso não se tome consciência das suas limitações e se utilize em meios inapropriados.
Sabe-se que este modelo, importado, tem vindo a ganhar adeptos e encontra-se implantado em certos meios universitários, sendo que, depois de adoptado, de estar desenhada todo uma estrutura e de serem formados técnicos para dar resposta, é difícil voltar atrás. Mas seria bom equacionar alguns reajustes, o que poderia passar por criar ocupações para todas as valências que este trabalho exige para ser aplicado o mais correctamente possível, principalmente no que concerne a recuperação dos terrenos por ele afectados e a sua monitorização.
De modo a não colocar todo o país em jogo, propõe-se que a técnica seja apenas utilizada, ainda de forma experimental, em zonas onde predominam os eucaliptais, nomeadamente em distritos a Norte do país ou em parcelas litorais no Sul (de preferência em áreas pouco habitadas), deixando as paisagens culturais e as áreas onde predominem as espécies autóctones em povoados mistos, onde esta técnica não é habitualmente utilizada, com outras soluções de intervenção.
Por fim, conviria ainda que as áreas sujeitas a fogo controlado tivessem, para além de uma monotorização apertada, que incluísse o impacto na fauna, um registo rigoroso de todas as aplicações, de modo a que, em caso de incêndio, fossem inequívocas as conclusões.
3.º O PGIFR anuncia a criação de “novas paisagens” sem explicar com clareza no que consistem. Supõe-se que passe por uma modelação generalizada da vegetação através da vulgarização do uso do Fogo Controlado. Mas criar novas paisagens deveria pressupor criar ambientes saudáveis, bem compreendidos quanto à forma como se sustentam, para haver um sentido de perenidade, uma visão a longo prazo, como algumas das nossas paisagens já têm. Por exemplo, os montados, embora tenham historicamente as condições climáticas mais desfavoráveis do país, tem tido poucos incêndios graves.
4.º Embora apontada como uma das causas dos incêndios, em Portugal, o tamanho da propriedade pouco influi. Se, de facto, nos latifúndios do Alentejo, onde dominam os montados, os grandes incêndios não são comuns, as zonas onde optaram por eucaliptais também têm ardido. Em contrapartida, se os eucaliptais e pinhais dos minifúndios do Norte do país têm tido graves incêndios, os minifúndios do barrocal algarvio raramente ardem com gravidade. Na verdade, as causas maiores para os incêndios em Portugal prendem-se com o tipo de ocupação do solo em termos de vegetação ou de sistema de vegetação.
Não se inverter as opções actuais significa, para além de uma floresta mais perigosa, também a perda de património e o avanço da desertificação. Precisamos, ao invés, de mais e melhor floresta, tanto em termos de qualidade, como de gestão. Tratando-se a protecção das florestas contra incêndios de um desígnio nacional, deveriam ser analisadas estas razões para melhorar o PNGIFR.
Não precisamos de “novas paisagens”, mas de manter as que temos em equilíbrio, recuperar as que não estão, através de uma nova visão acerca do papel da vegetação (não a encarando apenas como um inimigo), bem como, de reduzir as monoculturas florestais, de um enquadramento normativo sério às áreas com eucaliptais e de uma abordagem eficaz às áreas ocupadas por espécies invasoras vegetais. Estas sim, situações perigosas. Só assim conseguiremos estar preparados para as alterações climáticas.
Aproveitar-se-ia para reformular a legislação que enquadra o Fogo Controlado, limitando a sua utilização aos contextos em que ele é ajustado, ficando bem definido, de modo a que o PNGIFR o possa integrar, não se tornando factor de ameaça para um futuro que se quer sustentável. Só assim se poderia dizer que, não só se criariam novas paisagens como o PNGIFR pretende, mas sobretudo, paisagens com futuro, capazes de incluir florestas seguras.